quarta-feira, 31 de março de 2010

Sempre foi assim, sempre o jardim se projectou para atravessar o tempo. O tempo, contudo, mudou. A Revolução Industrial assinala a entrada numa nova fase de aceleração progressiva do tempo até então desconhecida. Na primeira metade do século XX esta aceleração redobra de intensidade, até que, após a Segunda Guerra Mundial, o seu ritmo dispara ao limite, talvez, do comportável (1). Indiferente, a Terra continua a girar em torno do Sol. Ainda podemos assistir ao ocaso e ao amanhecer tal como os nossos antepassados, e as plantas ainda demoram o tempo de antigamente a crescer. Todavia, a vida contemporânea agita-se de uma velocidade desconhecida no passado e de uma subversão absoluta das dimensões da passagem do tempo. É a electricidade tornando indiferentes os dias e as noites, os transportes (automóveis, aviões, metros, TGVs, etc) fazendo com que rapidamente se transponham distâncias ainda há pouco inconcebíveis, as comunicações (cinema, televisão, telefones, satélites, Internet, etc) permitindo que se esteja em toda parte sem sair do lugar. Em suma, a técnica convertendo a vida humana em partícula de uma máquina gigante em permanente movimento.

Assim se transforma o tempo, pois o tempo é movimento e o movimento tempo. Sabemo-lo da física, do senso comum, e de instrumentos como as ampulhetas ou os relógios de ponteiros (hoje substituíveis pelos electrónicos) que medem a passagem do tempo pela descrição de um movimento. As plantas, contudo, em sentido literal, na generalidade dos casos não se movem, elas estão enraizadas (mesmo as plantas em movimento de Gilles Clément só se movem na mesma medida em nós transpomos o tempo, perpetuando-o nas vidas dos nossos filhos para além da fronteira da morte). E o enraizamento é a mais perfeita antítese da vida contemporânea, profundamente desenraizada, em permanente movimento. Os modos de vida contemporâneos exigem rapidez, velocidade, instantaneidade. Algo que dificilmente se compatibiliza com a duração própria do jardim, e que introduz necessariamente uma nova visão face à escolha e ao tratamento da vegetação.

De facto, ao longo do século XX, mas sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, assiste-se a um progressivo desuso de espécies de crescimento lento, como o buxo, o teixo ou as grandes árvores, ao mesmo tempo que, por razões de manutenção, os arbustos, em particular os arbustos de flor, tendem, a par dos relvados e dos prados a tornar-se o material vegetal de mais ampla aplicação. Esta necessidade, de impôr um novo ritmo ao jardim mais ajustado à vida contemporânea, acentua-se ainda mais no final do século, surgindo em força um gosto renovado pelas herbáceas vivazes, muito em particular pelas gramíneas, em composições que tentam harmonizar a funcionalidade, a estética e a ecologia (2). Entretanto, passado o período obscuro, como diz Dantec (1996), da década de sessenta, em que o jardim quase se diluiu por completo na funcionalidade do “espaço verde”, é retomada a arte dos jardins, agora mais necessária, sobretudo em espaço urbano, para acentuar o sentido perdido da passagem e da duração do tempo, e proporcionar espaços de repouso às mentes cada vez mais agitadas e alteradas pelo bulício violento da vida quotidiana. Com a arte dos jardins regressam as espécies de crescimento lento e as formas talhadas, marcas de permanência e de identidade do jardim, às quais se contrapõe a mutação e o movimento. Contudo, em muitos casos (sempre que o orçamento e a técnica o permitem), estas espécies (palmeiras, oliveiras, ciprestes, pinheiros, etc) são transplantadas adultas para o interior do jardim. Sinais do nosso tempo, um tempo que procura vencer o próprio tempo.

Hoje também a instantaneidade integra a linguagem do jardim. Fenómeno que tem certamente algo que ver com o facto de, nalguns jardins contemporâneos, a presença de vegetação, que confere ao jardim a sua duração própria, ser reduzida a plantações mínimas, ou, se quisermos, minimais, no limite, inexistentes ou artificiais. Forma literal, talvez radical, de representar uma ideia de “natureza técnica” ou, de todo, uma “ausência de natureza”, estes jardins foram até há bem pouco totalmente alheios à Tradição Ocidental. E, se bem que possam demonstrar alguma afinidade, pela inexistência de vegetação, com certos jardins Orientais, eles diferenciam-se igualmente destes, pois excluem a vegetação apenas como forma viva, mantendo-a em geral na forma representada. Em estado último, jardins de betão com plantas de plástico, jardins de pedra com plantas de betão, ou quaisquer outros do mesmo tipo que se possam conceber, todos de movimento tendencialmente de “grau zero”, são também sinais do nosso tempo (figuras E3-E4).

(1) É do conhecimento geral que na época contemporânea se tem verificado um aumento das doenças nervosas (Michel Baridon (1998) refere-o a propósito das transformações abruptas das sociedades contemporâneas). Algo a que não é certamente alheia a aceleração generalizada dos modos de vida.
(2) Veja-se a este respeito vários artigos dedicados à utilização de herbáceas vivazes na revista Topos – European Landscape Magazine, nº37, Dez.2001.

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