terça-feira, 13 de abril de 2010

Como em todas as coisas humanas as razões da forma procedem das razões do espírito. Quando, sobretudo a partir da década de quarenta, a máquina invadia os campos derrubando à sua passagem os muros e as sebes minuciosamente dispostos ao longo de séculos, as razões da cidade invadiam o campo. As máquinas tornaram inútil a actividade de uma grande percentagem da população rural, que, sem outros meios de subsistência, imigrou para a cidade. Mas o dardo que mais profundamente feriu a paisagem rural não foi senão a anulação da identidade do camponês, a televisão, o hipermercado, o microondas. A submissão do espaço rural aos determinismos da urbe e a conversão progressiva dos agricultores em “funcionários de entretenimento” ou em “jardineiros da paisagem” (JEAN CABANEL in BARIDON, 1998). Dificilmente, porém, se poderá converter toda a paisagem num imenso jardim tentando conservar artificialmente as leis de produtividade da sua estrutura, se esta, na realidade, se pretende improdutiva.

Talvez represente um grande perigo esta subversão das estruturas que ao longo dos tempos sustentaram a existência humana: a cidade, alma da civilização; e a paisagem, reflexo da relação harmoniosa entre o homem e a natureza. Mas os dados estão lançados. Do caos nascerá uma nova ordem. Por enquanto, as cidades e o campo progridem no seu fatídico destino, rumo ao subúrbio generalizado, ao caos generalizado. Nem cidade, nem campo. Extensão anárquica de moradias e arranha-céus, montes e hortas, quintas, indústrias, lixeiras, jardins, barracas, “espaços verdes”, estradas e rios. Extensão anárquica da qual os homens tentam por força evadir-se.

É esta talvez uma das marcas mais profundas do nosso tempo, a fuga generalizada. Da cidade para o campo, do campo para a cidade, e de todas as partes para onde quer que possa ser reencontrada a natureza. Sintomas de uma grave ruptura com o cosmos de que se começavam já a delinear os contornos aquando da emergência das sociedades industriais e urbanas (CHARBONNEAU, 1990).

O despertar de um sentimento da natureza, e, igualmente, de uma nova ideia de natureza, começou por se manifestar na aristocracia e burguesia rica da Inglaterra do século XVIII, cujo conforto e cultura “permitiam” o afastamento da natureza (CHARBONNEAU, 1990). A princípio somente “alguns ingleses ociosos viajam, frequentam as praias ou as montanhas” (11), mas depressa a moda conquista todo o Ocidente industrializado. No século XIX o sentimento da natureza é ainda uma moda muito elitista, um requinte reservado às classes mais abastadas e cultas, e, mesmo, um sinal de distinção. Mas, progressivamente, o fenómeno vai-se generalizando, até atingir proporções, após a Segunda Guerra Mundial, de um verdadeiro “assalto” à natureza. Tal como a princípio, os amantes da natureza de hoje, não dispensam, nas suas incursões ao mundo natural, todas as comodidades proporcionadas pelo “progresso”. Assim proliferam os hotéis, as casinhas de campo, as casinhas de praia, os campos de ténis, os campos de golfe e as estradas, que levarão cada vez mais longe e mais depressa os corpos e almas necessitados de natureza (mas também de maquilhagem) aos ditos lugares naturais, acabados de converter num tipo de subúrbio não muito diferente daquele que enreda as cidades. Para onde fugir? Aos mais abastados não restará alternativa senão procurar a natureza ainda mais longe, talvez nalgum lugar recôndito da Terra onde ainda subsista um povo primitivo...

(11) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.129.

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