terça-feira, 13 de abril de 2010

No princípio era o Verbo. Antes dele não havia natureza. O homem era então parte da força indizível, infinita e sagrada do cosmos. Ele próprio não era senão natureza. Depois, Deus apartou a luz das trevas, o espírito da matéria e criou o primeiro jardim. O jardim que continha toda a obra da Criação. Foi às portas deste jardim que o homem conheceu verdadeiramente a natureza, o inimigo que haveria de o ocupar em intermináveis batalhas ao longo de séculos. De um lado o homem, do outro os vagalhões verdes em choques sucessivos contra as muralhas da civilização (CHARBONNEAU, 1990).

São as plantas o estandarte do cosmos na Terra. Veios verdes invadindo as frestas das nossas calçadas, os buracos do alcatrão, as frinchas dos muros e paredes. São as plantas de sempre, as do antes e do depois da natureza, o elo que nos inspira a tentar reatar os laços perdidos com o cosmos. As plantas que trazemos para dentro das nossas casas em pequenos vasos e para o interior das nossas cidades, até há bem pouco, apenas na forma de pequenos jardins, criados à imagem do paraíso por um espírito cristão, mais distante da maldição primeira, um tudo nada mais próximo da natureza.

Na verdade, para que o cristianismo da Idade Média se adaptasse às sociedades conquistadas, foi necessário que se tornasse pagão, regressando de alguma forma à natureza, “mas nem por isso deixara de conter dentro dele o princípio de uma dessacralização das coisas” (3). Só o retorno a um paganismo mais profundo, no Renascimento, permitiria que do interior das cidades da Europa, o homem descobrisse a paisagem (BERQUE in DANTEC, 1998). “Forma intrínseca do ambiente para uns, projecção de uma cena interior do sujeito para outros” (4), a paisagem nasceu de uma lenta e gradual submissão do homem à natureza e da natureza ao homem (CHARBONNEAU, 1990). De acordo com Bernard Charbonneau (1990) “desse casamento no qual os campos e as sebes se moldam às formas dos outeiros, cujos vales mostram as quintas e aldeias nos mesmos pontos em que os ramos mostram os frutos. Neles os prados penetram nos bosques, e os bosques nas vinhas. E como não seríamos capazes de dizer onde começa o homem e onde acaba a natureza na paisagem, é impossível distinguir o camponês do seu campo”.

Era de tal forma bela e harmoniosa a paisagem que o homem do período Romântico entendeu que à sua imagem poderia criar jardins. Foi sobretudo nesta altura que se permitiu que a velha inimiga, a natureza, começasse a transpor os contrafortes da civilização – a cidade –, “a cidade dos homens, ainda não a cidade dos automóveis. A cidade dos indivíduos, e da sua palavra, cujo coração é um fórum e não um parque de estacionamento” (5).

Com a natureza representada no jardim por meio da paisagem, começavam na época romântica os primeiros sinais da crise dos conceitos de paisagem e de jardim. Problemas ainda muitos ténues, já que vistos à luz de uma clara distinção entre a cidade e o campo por um homem sensível, animado de um sentimento de profunda pertença à natureza. Contudo, talvez esta necessidade de reatar os laços com o cosmos não fosse senão fruto da consciência nostálgica de que o combate entre o homem e a natureza havia chegado ao fim. A natureza estava dominada, vencida. Ainda assim, durante algum tempo, ela “subsistiu, lado a lado com a civilização” (6).

(3) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.29.
(4) Cf. Augustin Berque in Baridon, Michel, Les Jardins, Éditions Robert Laffont, Paris, 1998, p.1156.
(5) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.22.
(6) Cf. Charbonneau, Bernard, Ibidem, p.35.

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