terça-feira, 13 de abril de 2010

Eis-nos ainda no melhor da nossa natureza humana: a escravizar os outros homens e a sugar com todas as forças o leite e o mel da Mãe Natureza. Parece, contudo, inevitável que o nosso comportamento nos condene, pela segunda vez, a sermos expulsos do paraíso. No princípio, Deus fez do caos a ordem e a infinita perfeição, diversidade e beleza de todas as coisas. Expulsos do Jardim da Criação e apartados do cosmos, descobrimos a natureza. Perante a sua força, e à vista da fraqueza e nudez dos nossos corpos, parecia-nos demasiado severa a sentença de Deus: “Ganharás o pão com o suor do rosto” (14). Desconhecíamos então que a natureza não era senão um prolongamento do paraíso. Dela fizemos a ordem e depois o caos, tempos de uma infância feliz. Em breve tomaremos em mãos a infinita complexidade da obra do Criador, e do caos faremos, na mais optimista das perspectivas, um jardim. Um jardim que se erguerá para além do último reduto da natureza: a natureza humana. Pois, tudo indica que só um último assomo de natureza, uma necessidade genuína de sobrevivência, nos empurrará à força para o interior do Jardim.

Se assim for, no Jardim da Criação Humana não nos será permitida a liberdade. O equilíbrio frágil que arrancaremos ao caos será necessariamente regulado ao ínfimo pormenor, não condescendendo com quaisquer infracções. A maldição de Deus soará então com verdadeira intensidade, pois tudo aquilo de que necessitamos terá que ser obtido à custa do nosso esforço. Mas, mais grave ainda, estaremos expostos ao maior dos perigos: o da ignorância. Pois não mais será permitido ao homem o dom humano de errar.

Juntamente com as novas sociedades urbanas e industriais reabrimos uma autêntica caixa de Pandora. Estaremos à altura de defrontar os perigos que se avizinham? O tempo escasseia, precipitando-se numa aceleração inédita na história, e o homem parece não se ocupar senão em esvaziar de vez todos os males da vasilha, mesmo desconhecendo de todo as suas proporções. Apesar dos esforços bem intencionados de alguns espíritos generosos, as perspectivas não são animadoras. Pouco importa, pois, iludirmo-nos agora com verdades fáceis, o futuro exige autenticidade, ele será o que dele fizermos. Talvez um assomo de consciência ainda nos permita reatar os laços perdidos com o cosmos.

Será necessário começar por compreender que a natureza não é nenhuma trivialidade que possamos relegar para os nossos momentos de ócio. Ela é, pelo contrário, uma necessidade “elementar e essencial” à existência humana, física e espiritual. No seio da Grande Mãe nascemos e nela findamos, “quando ferimos a natureza, é a nossa própria carne que rasgamos” (15). Não há pois explicação, excepto a do absurdo, para que precisemos de defender a natureza tanto das agências de turismo como da indústria química (CHARBONNEAU, 1990). Que espécie de sentimento da natureza é este que nos permite vendê-la e compra-la a retalho, como a qualquer outro produto de hipermercado embalado a celofane?

É a ordem natural na natureza que nos falta. Inútil será procurá-la num desses “lugares naturais” para onde se dirigem as massas em peregrinação espalhando um trilho de caos à sua passagem. Qualquer verdadeiro amante da natureza foge desses lugares quanto pode. Quanto a estender o caos a outras partes ainda sujeitas à ordem suprema do Universo, não se trata já de mera inconsciência, mas de uma atitude criminosa. Se é a ordem que nos falta, há que gerar a ordem, estendê-la a todas as partes hoje infectadas pelo caos (às cidades e aos campos, a todas as paisagens). Isto exigirá certamente um sentimento mais autêntico e profundo da natureza, uma violência, é certo, para com a nossa natureza humana, mas, por força, teremos que ser um pouco mais delicados e sensíveis nas nossas relações de amor para com ela.

Nas palavras sábias de Caldeira Cabral (1993), do “esplendor da ordem” emergirá a beleza, a ela intrinsecamente associada. Só a ordem nos permitirá reatar os laços perdidos com o cosmos e deter a fuga desesperada dos homens de todas as partes para todas as partes. A ordem e a arte, a verdadeira arte, laço divino entre o homem e Deus, como refere Francisco de Holanda (1984), figura iminente da história da arte portuguesa. Não haverá, porém, como produzir a ordem sem que antes, por meio de alguma fórmula ainda desconhecida, se produza uma sociedade mais justa, violando, mais uma vez, as leis da natureza humana. Problema sem solução à vista, resta-nos, por ora, procurar os princípios essenciais do que seja a ordem.

Face ao sentimento de perda do elo existencial que nos une ao cosmos, e em busca do mistério da ordem e da beleza, a partir sobretudo da década de sessenta, o pensamento humano detém-se com um interesse renovado na paisagem, pois nela subsiste o segredo de uma relação equilibrada entre o homem e a natureza. Mas, o que é a paisagem?

(14) Cf. Génesis 3:19.
(15) Cf. Charbonneau, Bernard, O Jardim de Babilónia, Edições Afrontamento, Porto, 1990, p.31.

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